RAQUEL COZER
COLUNISTA DA FOLHA
As
inquietações que atravessaram a vida de Mário de Andrade serão onipresentes em
2015, quando se completam 70 anos da morte do autor de "Macunaíma". O poeta,
romancista, agitador e gestor cultural, para citar poucos pontos de seu vasto
currículo, foi anunciado como homenageado da 13ª Festa Literária Internacional
de Paraty, de 1º a 5/7. O tributo ocorre no ano que antecede a entrada de sua
obra em domínio público (quando não é mais necessário pagar direitos autorais
para publicação). Mário também
terá sua vida e sua produção resgatadas em um volume biográfico, ao qual se
seguirão a publicação de um romance inédito e de dois ou três livros de cartas.
Em reforma,
a casa em que viveu, no bairro da Barra Funda, em São Paulo, deixará de ser
apenas uma oficina cultural da Secretaria de Estado da Cultura, passando a
funcionar também como micromuseu e espaço para peças e outros eventos
culturais. "Além
da efeméride, que pode ter o peso de uma verdadeira revisão de sua obra, pesou
na escolha de Mário sua ligação com projetos desenvolvidos pela Casa Azul, que faz
a Flip", diz Paulo Werneck, curador do encontro, citando o Museu do
Território, que documenta mudanças da cidade histórica fluminense.
A série de
lançamentos será iniciada em fevereiro, quando uma lacuna no mercado editorial
será atenuada com o ensaio biográfico "Eu Sou Trezentos" (Edições de
Janeiro), de Eduardo Jardim.
A obra
entrelaça as tensões presentes na vida e na obra do modernista –tanto na
sensualidade exacerbada quanto nas exigências críticas–, em volume ilustrado
com cerca de 50 fotos do acervo de Mário no Instituto de Estudos Brasileiros
(IEB/USP).
Herdeiros de
Mário já foram apontados por pesquisadores como entraves à publicação de
material biográfico sobre ele. Jardim diz não ter pedido autorização à família
para o livro, embora tenha dado uma cópia a Carlos Augusto de Andrade Camargo,
sobrinho de Mário, ao pedir para usar fotos do acervo.
O autor diz
que não foi feito nenhum pedido de corte no conteúdo, que aborda um tema que se
tornou tabu, a homossexualidade do autor, e aspectos nunca estudados, como o
antissemitismo.
Este último
é exemplificado em cartas como as enviadas a Cândido Portinari, em que, ao
citar o pintor Lasar Segall, dá argumentos para rechaçá-lo, como os de que os
judeus são uma "raça com que não me acomodo".
VIDA E OBRA
SÃO INDISSOCIÁVEIS
Para Eduardo
Jardim, autor de "Eu Sou Trezentos", vida e obra de Mário de Andrade
são indissociáveis. "É difícil falar da produção dele sem se referir à
trajetória pessoal, porque foi uma vida dedicada a um projeto, junção exemplar
da vida com a proposta intelectual, a produção literária, a atuação
política."
O autor
destaca a depressão vivida pelo modernista quando, à frente do Departamento de
Cultura de São Paulo, viu seu projeto ser, em 1937, repentinamente
"desmontado pelo Estado Novo" –Mário sentiu-se, como disse,
"especialmente deserto".
Situações
extremas e tensões como essa atravessaram toda a vida do escritor. Por conta
delas, e também de confissões, partes de sua vastíssima correspondência com
nomes como Manuel Bandeira, Oswald de Andrade (amigo e depois desafeto) e
Drummond, acabaram censuradas.
"Muita
coisa deve ter sido cortada no conjunto da correspondência, a seu pedido ou por
iniciativa dos amigos", anota Jardim no livro, em referência a edições que
Bandeira fez ao editar, em 1958, cartas recebidas do amigo, retirando trechos
que poderiam soar ofensivos a colegas.
Uma dessas
precauções gerou um mistério relativo à troca de cartas com Bandeira.
Quinze
cartas enviadas pelo autor de "Macunaíma" entre 1928 e 1935 estão
hoje no acervo de Bandeira, na Casa de Rui Barbosa, no Rio, mas apenas 14 delas
podem ser acessadas por pesquisadores. Uma única está lacrada, numa gaveta
separada.
Acredita-se
que nela Mário de Andrade fale abertamente de sua homossexualidade –embora
tenha dado pistas sem fim em outras cartas e em sua obra, como no caso do conto
"Frederico Paciência". Embora a existência da carta já tenha sido até
noticiada na imprensa, quem conhece o caso hesita em comentá-lo.
"Tomei
conhecimento dela há mais de 20 anos, mas nunca mais a vi. Parece que a família
tem pedido para que continue reservada", diz Júlio Castañon Guimarães,
pesquisador aposentado da Casa de Rui. Carlos Augusto de Andrade Camargo,
sobrinho de Mário, diz que o pedido partiu do próprio Bandeira.
De todo
modo, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), que guarda 7.000 cartas
recebidas por Mário e cerca de 1.000 enviadas por ele, vem editando com a Edusp
uma série a partir desse material. Neste ano devem sair um livro com a
correspondência com Alceu Amoroso Lima e outro com Newton Freitas.
Até a Flip,
a Nova Fronteira, que edita a obra literária de Mário junto com o IEB,
publicará um volume de contos e crônicas; uma versão em HQ de
"Macunaíma", com roteiro de Izabel Aleixo e ilustrações de Kris
Zullo; e o romance inédito "Café".
Esse
romance, iniciado em 1925 e centrado na história de um cantador nordestino,
ocupou boa parte da vida de Mário, tendo excertos publicados em revistas e no
jornal "Folha da Manhã".
Fonte: Folha de S. Paulo - 17/01/2015